quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Otávio Frias Filho, ensaísta

No livro Mil Dias: a história da transformação de um jornal, o jornalista e catedrático Carlos Eduardo Lins da Silva abre espaço, já no final do livro, para que um desafeto histórico da publicação comente sobre o jeito Folha de ser. Pois a certa altura do texto, Mino Carta, cuja opinião é bastante virulenta quando se trata de desancar as publicações da "grande mídia" (um dia, quem sabe, vale a pena explicar a respeito), escreve que Otávio Frias Filho, um dos responsáveis pelas mudanças editoriais que marcaram a Folha e o jornalismo brasileiro na década de 1980, só assumiu o jornal porque era filho do dono. Assim, ele jamais saberia se teria mesmo talento para alcançar o status de Diretor de Redação caso seu pai não fosse o "seu Frias".

Ainda que extremada, o relato acima diz muito sobre a opinião acerca de Otávio Frias Filho. É fato: todos adoram odia-lo. O motivo é visível para todos aqueles que, por R$2,50, compram a edição do jornal de maior circulação no País. Para o bem ou para o mal, a Folha de S.Paulo é o veículo, que, contraditório, crítico e plural, agrega os diferentes e permanece no imaginário dos leitores como o veículo mais odiado, como escreveu certa feita Bernardo Kucinski num ensaio publicado no livro Síndrome da Antena Parabólica. Se o jornal é, de fato, o mais odiado, Otavinho, como é chamado por aqueles que supõem possuir alguma relação mais próxima com o jornalista, é a encarnação do mal por aqueles que conseguem identificar um alvo. Infelizmente por esse motivo, toda uma leitura crítica do mundo é deixada de lado por esse misto de preconceito e inveja. E é triste, pura e simplesmente triste, que um país com poucas pessoas afeitas ao debate de ideias e à análise intelectual dos fenômenos sociais contemporâneos ignore um ensaísta como Otávio Frias Filho, cujo livro Seleção Natural, editado pela Publifolha em 2009 é não apenas um belo exemplar desse gênero raro no Brasil como abre espaço para textos que propõem um olhar crítico sobre temas exemplares para o debate intelectual da contemporaneidade.

Exagero? Com efeito, aqui e ali, um professor universitário recalcado, cujo texto não consegue se erigir com sujeito, verbo e complemento, provavelmente dirá que Frias Filho não possui talento ou sequer formação para se meter a escrever sobre teatro (sobre a obra de Nelson Rodrigues e a crítica de Décio de Almeida Prado), política (Alexis de Toqueville; e uma análise do PSDB), literatura (George Orwell e Dostoievski), cinema (François Truffaut e Tim Burton) e, pasmem, a obra de Charles Darwin. Esse mesmo acadêmico padrão se surpreenderia, no entanto, ao saber que Frias consegue dissertar com qualidade sobre esses temas e, mais do que isso, o jornalista possuir, sim, formação acadêmica para tanto: Otávio Frias Filho é formado em Direito e Ciências Sociais, tendo concluído mestrado sob a orientação da profa. Ruth Cardoso. Mas cair na esparrela de debater o livro de Frias por esse viés não é o mais indicado, sobretudo porque o livro se garante a despeito do discurso forjado por certa academia.

O gênio dos ensaios de Seleção Natural reside especificamente na abordagem sofisticada, serena e atemporal que, paradoxalmente, é contrastante com a perspectiva jornalística, que é o da produção em série de textos, sem qualquer tempo para reflexão. Os ensaios, nesse sentido, se distanciam do jornalismo, mas a ele retorna tão logo se descobre que Frias trata de assuntos flertando com o espírito de seu tempo. Ou seja, parte do teórico-conceitual para o factual e às vezes faz o movimento inverso, conduzindo os leitores para os caminhos de sua articulação. É importante frisar que o autor, embora contundente, não impõe seu ponto de vista ao leitor. Antes, faz com que este concorde com sua leitura do mundo com exemplos, ilustrações e bastante sagacidade.

A esta altura, alguém poderá dizer: mas não são muitos elogios? Não, não são. Leiam o livro e vejam como o texto de Frias se consolida pela clareza e pela boa argumentação. Todavia, também é correto afirmar que, em relação à obra anterior (Ensaios de Risco), esta não conta com textos inéditos e/ou previamente articulados entre si. O único ponto fraco, se assim é possível chamar, do livro é exatamente o fato de, ao trazer textos esparsos de Frias publicados nos suplementos culturais da Folha ("Mais"; "Folhetim") ou em publicações diversas ("Piauí" e "Novos Estudos") é mostrar ao leitor que a produção autoral do diretor de Redação da Folha de S.Paulo vai além da assinatura no alto da página do jornal que se confunde com sua trajetória.

É a esse respeito, a propósito, que vale a pena mencionar as duas cartas que seguem como espécie de apêndice ao livro. A primeira tem como título singelo: "Carta Aberta ao sr. Presidente da República". Os tempos eram outros, não há dúvida disso. E a Folha, então, assumiu postura bastante combativa com relação ao governo. Pouco tempo depois, num episódio tão desastroso como conturbado, Fernando Collor de Mello, o presidente em questão, fez com que a Polícia Federal invadisse o jornal. O caso está relatado com mais precisão e detalhe no fundamental Notícias do Planalto, de Mario Sergio Conti. Frias, como resposta, assinou a carta, que foi estampada na primeira página do jornal, deflagrando o posicionamento contrário da publicação contra a figura do presidente. O episódio fez com que a Folha assumisse um papel progressista entre os veículos de comunicação, ainda que não tivesse declarado isso de forma assertiva. Dito de outra forma, a posição da Folha em 1991, quando da publicação da "Carta Aberta", foi circunstancial. O outro texto que merece destaque, ainda nesse segmento do livro, por ocasião da celebração da missa em homenagem à morte de Octavio Frias de Oliveira, o publisher da Folha de S.Paulo. Embora de cunho íntimo e pessoal, é interessante observar que o texto foi publicado no extinto caderno "Brasil" do jornal. E por que uma carta desse teor merece tanto atenção, a ponto de ser deixada no livro? Minha hipótese: trata-se de um testamento de seu Frias. Nela, o filho que assumiu a direção do jornal expõe de forma aberta um pouco da personalidade do pai, numa homenagem, ainda que não barroca, essencialmente sentimental.

Otávio Frias Filho pode ser, para muitos, a verdadeira encarnação do manipulador maquiavélico, alguém de quem é preciso, acima de tudo, desconfiar, especialmente porque é diretor de um jornal que, reconhecidamente, tem apreço pela polêmica e por defender posições fortes (basta lembrar o famigerado caso da Ditabranda, em 2009). A despeito disso, é fundamental considerar, também, Otávio Frias Filho como ensaísta que é, dono de um dos textos mais claros que se tem notícia, algo a não ser escanteado, por mais que os desafetos de Frias afirmem o contrário.

 Seleção Natural
Otávio Frias Filho
 

Logicomix: Filosofia em Quadrinhos

Antes do texto, a confissão: sempre torci o nariz para textos literários em quadrinhos. A meu ver, talvez por demais influenciado por certo ranço da teoria crítica, os quadrinhos eram a mais perfeita tradução do kitsch, do midcult, da mistificação em torno de um produto da cultura de massas. A manifestação literária em quadrinhos merecia para mim a lata de lixo da história. Uma mistura, enfim, de ignorância com prepotência e preconceito. Coisas de jornalista.

Há algumas semanas, recebi, da editora Martins Fontes, a graphic novel Logicomix, assinada pelos autores Apostolos Dioxiadis, Christos Papadimitrou, Alecos Papapdatos e Annie di Donna. Trata-se de obra de respeito, que desata os preconceitos mais toscos em torno de uma produção literária (sim, literária) em quadrinhos. Mais do que adaptação, o texto assinado pelos quatro autores merece destaque e elogios pela sua originalidade. A narrativa se dá em duas camadas: numa primeira moldura, existe a história de quatro autores que buscam apresentar uma narrativa em quadrinhos sobre lógica, filosofia e busca da verdade. Para tanto, e aqui entra a segunda moldura, existe a narrativa da trajetória sentimental e intelectual do filósofo Bertrand Russel, um dos expoentes da lógica e do pensamento racional.

A virtude da obra reside no fato de a narrativa se apresentar de maneira pouco óbvia. Isto é, o texto consegue apresentar de maneira sofisticada elementos conceituais além de não perder o fôlego de uma história em quadrinhos. Para mim, isso fica claro em um elemento a um só tempo subjetivo e essencial: sendo um leitor interessado em filosofia, não senti que o conteúdo foi vilipendiado por uma pretensão proto-elaborada. Pelo contrário. Os autores não baixam a guarda, enfatizando a importância da reflexão e pontuando a jornada de Russel com as alusões e referências a autores e conceitos. Nomes como o romancista russo Turgêniev, ou o pensador austríaco Wittgenstein; do mesmo modo como existe a apreciação dos pressupostos da lógica.

Se é verdade que uma das premissas filosóficas é a curiosidade, também é correto afirmar que o texto de Logicomix se notabiliza por não apenas aguçar o interesse do leitor, mas, outrossim, por oferecer ao público um jornada intelectual que em nada diminui os conceitos ou os autores citados. Talvez o mais relevante esteja no fato de Logicomix extravasar a ideia banal que alguns possuem sobre graphic novel.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

A América para os bandeirantes

Causou-me espécie o anúncio publicado na primeira página do caderno Ilustrada, da Folha de S.Paulo. Resumo da Ópera: um tradicional colégio de São Paulo, liceu da fina flor da elite paulistana (a Elite Branca, diria Claudio Lembo), manda avisar que "yes, nós preparamos para o SAT". O SAT, como sabem todos aqueles que já assistiram a um filminho yankee, é aquele exame comprobatório da capacidade dos alunos ingressarem no concorrido, disputado e sofisticado Sistema de Ensino Superior dos Estados Unidos. É uma espécie de ENEM, sem os vazamentos e com a garantia de que, uma vez tendo conquistado boas notas, o aluno tem a oportunidade de ingressar em respeitadas instituições de ensino dos EUA.

Em verdade, a opção pelo SAT, assim como as inúmeras oportunidades de intercâmbio que têm sido oferecidas pelas universidades particulares brasileiras, mostra que a preocupação com a grife educacional é, talvez, mais importante do que com a formação em si. Dito de outra maneira, agora que o ensino superior é, à sua maneira, uma espécie de commodity, não basta ingressar em instituições de ensino. É preciso que esta instituição ofereça algo mais do que a educação. E, nesse caso, se a formação vier com a chancela do USA, rá, a elite poderá esfregar na cara do andar de baixo: "Ei, enquanto seu diploma é da Uni-du-ni-tê, o meu é de uma Ivy League". Do ponto de vista prático: enquanto a Classe C ingressa no ensino superior para, quem sabe, conquistar uma vaga de trabalho como operador de telemarketing, os verdadeiros donos do poder seguirão no topo da pirâmide, não importando aqui com essa suposta ascensão social. É como se dissessem: "ok, vocês podem estudar, mas isso não vai mudar nada, ok? Nossa formação ainda é melhor. Quem diz é o próprio mercado". E, nesse jogo de cartas marcadas, já sabemos para onde a balança vai pender.

Mas, é claro, a todos aqueles que desejarem estudar no referido colégio, creio eu, não vão faltar oportunidades. Até porque, imagino, o processo deve ser democrático o bastante para deixar ingressar na escola todos aqueles que puderem financiar seus estudos. Não há almoço grátis, diria aquele simpático velhinho.  

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Somos todos Tiriricas?

A mídia reclama. Os intelectuais grasnam. A choldra se incomoda. A elite faz cara de nojo. Escolha o seu grupo, mas o inimigo do povo, hoje, atende pela alcunha de Tiririca, o cantor-humorista que, agora, quer ser Deputado Federal. Ninguém sabe muito bem por que. Nem mesmo ele, conforme se vê no Horário Eleitoral, parece ter certeza de seus ideiais. Aqui, talvez, eu esteja comtendo um engano: o único ideal de Tiririca é ser eleito para o cargo de Deputado Federal. E tome reprimenda. De todos os lados, há quem censure o dublê de político, suas vestimentas, sua retórica chula, sua fala infantil e seus maus hábitos. É como se, na protocidadania que é o Brasil, o Tiririca fosse um verdadeiro --- quiçá o único --- bestializado, alguém que desmascara o nosso jeito tosco de ser. E, num país cioso de suas (supostas) virtudes, ninguém quer ser feio, ser desafinado, destoar do discurso politicamente correto. Ninguém quer ser Tiririca. Ou, antes, ninguém quer que o Tiririca apareça por aí, extravasando nossas fissuras sociais e nossos instintos mais primitivos. Toscos, sim, mas sem perder a ternura. E o Tiririca, como diria meu amigo Marcos Lauro, perdeu toda a ternura.

Mas eu divago. Não quero, aqui, defender o Tiririca. Ele nem precisa. Ao que tudo indica, vai ser eleito com folga --- e o sistema político nacional é que precisa debater esse tipo de aberração eleitoral. O que chama a atenção é a reprimenda de todas as frentes que existe ao Tiririca. Evidentemente, o problema não é o Tiririca, mas a ideia do Tiririca. Concebem? Não? Eu explico. O problema é o Tiririca sair por aí, dando opiniões, mostrando a cara do Brasil que se esconde por trás da suposta Classe C. É a gente humilde da música de Vinícius de Moraes que quer brincar de ser Gordon Gekko, mas, de alguma maneira, está no meio do caminho do paraíso. Em síntese, há um temor de que tudo volte a ser esculhambado como antes, e o Tiririca é a lembrança de que jamais deixamos de ser o Bananão (salve, Ivan Lessa). O Brasil não conhece o Brazil. E o Tiririca é o ponto fora da curva que os números recentes do PNAD e de todas as pesquisas sobre desenvolvimento social e crescimento econômico não mostram. É a nossa face mais abjeta.

Tiririca, portanto, não peca pela sua gramática, ou por seu estilo; nem pelo conteúdo, tampouco pela forma. Tiririca peca porque expõe aos olhos de todos que ainda somos semianalfabetos; que estámos au-dessous da civilização; que a gente somos inútil. Tiririca está errado porque, ao aparecer no programa eleitoral gratuito como candidato a Deputado Federal, revelando sua ignorância acerca da coisa pública, reafirma que nós ainda não superamos. Ao fim e ao cabo, é como se ele perguntasse: somos todos Tiriricas? 

Uma Pintura às sextas -- W. Kandinsky