sexta-feira, 20 de junho de 2008

Um Tratado sobre a Gentileza

Talvez um Tratado Sobre a Gentileza devesse ser escrito. Não por mim, que não tenho esse talento com as palavras, mas por alguém que tenha paciência para dissertar a respeito desse tema. A motivação é a de sempre: a gentileza não é mais praticada em nossos dias. Esqueça da liberdade, esqueça do respeito às minorias, esqueça do politicamente correto. Sem a gentileza não chegaremos a lugar algum. Eduardo Carvalho, autor de um dos blogs mais bem frequentados da internet tupinambá (ave, Pedro Doria), escreveu certa feita sobre a arte de conversar (ou algo do tipo. Estou com certa preguiça --- preguiça boa, diga-se --- de procurar o link; mas, divago). A constatação, se bem me lembro, era simples: as pessoas não sabem mais conversar, dialogar. E eu, tomando por base essa idéia, completo: as pessoas, grosso modo, não sabem mais o significado prático da gentileza. Há, sim, o nefando networking empresarial, a gestão de pessoas, o feedback e até mesmo o embuste da "crítica construtiva", mas nada de gentileza. Em síntese, as pessoas não sabem mais ser gentis e isso, muito mais do que um desvio de caráter, é um sinal dos tempos do fim da civilização.

É claro que não escrevo sobre a civilização tal qual imaginada pelos historiadores ou sociólogos ou antropólogos ou religiosos. Falo da idéia de civilidade. Explico: ontem mesmo, zapeando os canais de TV (ah, a pós-modernidade fugaz dessa existência), assisti a um trecho do documentário sobre a palavra Fuck. Não, por favor, não me perguntem quem é que teve a brilhante idéia de produzir um filme a respeito disso. O que interessa, voltando ao ponto, é o depoimento de um linguista, que não era o Chomsky: segundo ele, ao longo da história a civilização sempre entrava em combate com a barbárie e a derrota da primeira era tão certa quanto a derrota de Portugal nas semifinais dos campeonatos europeus e mundiais. Sim, o destino não guarda um lugar ao sol à idéia de civilização que, dia sim, outro também, é questionada por intelectuais, esquerdinhas, leitores de blogs, blogueiros e aqueles ongueiros tão bem retratados no filme Tropa de Elite. Sim, é a tal da consciência social. Mas, novamente, divago.

A gentileza está para a civilização da mesma forma que a barbárie está para o funk. O paralelo é perfeito. Como escreveu outro dia o também jornalista Jonas Lopes: "nunca vi alguém que leu Proust explodir um trem ou cometer atentado terrorista". A gentileza, bien sûr, não é dádiva apenas dos bem intencionados. Quem assistiu a Silêncio dos Inocentes vai se lembrar do doutor Lecter, que era capaz de comer o cérebro de um músico da filarmônica por este não executar com o devido rigor uma peça. Ok, o personagem é um vilão (um dos principais da história do cinema). Nem por isso, no entanto, ele deixava de ser elegante --- e, por extensão, gentil. Vejam que até mesmo no crime a elegância deve ser levada em consideração. Nesse sentido, os requintes de crueldade dos crimes hediondos apenas escancaram o mal gosto de certos bárbaros.

Também nas artes e na literatura, a gentileza, como já foi dito, faz a diferença. Alguém duvida que meia dúzia de aforimos de Oscar Wilde (posso resistir a tudo, exceto à tentação) vale mais do que a obra reunida de alguns expoentes da literatura contemporânea? Nomes? Ora, leitor, este blog, ainda que injuriado, é gentil, e jamais revelaria, como se diz?, "na cara" o que pensa dos seus desafetos. A propósito, se existe algo que este blogueiro preza é que se fale mal dos outros pelas costas. Sempre. A verdade dói e, como cantou Cazuza parafraseando Clarice Lispector, "mentiras sinceras me interessam".

Assim, pede-se que alguém escreva logo esse tratado sobre a gentileza. Uma obra que valeria mais, muito mais, do que esses manuais de como ser chique. Uma pessoa gentil jamais presentearia alguém com um livro desse tipo --- a não ser, claro, se for como ironia. A ironia, aliás, é a forma gentil de se criticar alguém. Pena que esteja tão fora de moda, mais até que a gentileza. Mas isso é assunto para outro texto.