sábado, 7 de agosto de 2010

A imaginação como farsa

Um filme é para sempre, escreveu certa vez o jornalista e biógrafo Ruy Castro. A afirmação pode parecer exagerada, mas tem lá sua dose de verdade. O leitor duvida? Exemplos existem aos montes, basta escolher um exemplo na TV a cabo, nas locadoras ou até mesmo uma olhadela na programação da TV aberta. Os filmes podem, sim, ser entendidos para além do seu enunciado objetivo. Um caso evidente disso está em "A Natureza Selvagem", dirigido por Sean Penn.

Sean Penn é desses diretores/atores de Hollywood que se destacam porque, aparentemente, não pertecem ao status quo, ao establishment. Em outras palavras, significa dizer que, se você estiver numa roda com gente meio intelectual, meio de esquerda, a menção aos seus filmes ("Milk"; "Sobre Meninos e Lobos"; "21 Gramas") fará com que você seja recebido de forma calorosa a esse petit comitê dos bem-pensantes. Os protointelectuais, como poucos, sabem telegrafar seus passos.

Em "A Natureza Selvagem", para os que ainda não assistiram, vemos a jornada rígida e pouco ordinária de um garoto que pretende se desprender dos aspectos materiais de sua vida burguesa nos EUA. Sim, sim, estamos no sonho americano, a ser concretizado por esse garoto que vive uma América que já começa a viver nos exuberantes anos 90, na ressaca da queda do Muro de Berlim, quando o presidente ainda era Bush pai. Não havia crise como conhecemos hoje. À época, a expectativa para um recém-graduado como o jovem Christopher McCandless era conseguir um bom emprego, trocar de carro e, a rigor, reproduzir - e, quem sabe?, aprimorar - o estilo de vida de seus pais, cujo comportamento soa, a um só tempo, como caricatural e verdadeiro. Cena de cinema.

McCandless, então, quebra essa expecativa. Sai, como um easy-rider dos anos 1990, em busca da essência, de algo que vai além da matéria. Até aí, nada de novo. Quem já teve a oportunidade de frequentar os departamentos de humanidades das Universidades públicas sabe como esse sonho é tão latente como recorrente. A questão é que o filme, belamente conduzido por Sean Penn, trabalha com uma premissa de que os jovens são, sim, dotados dessa capacidade de enxergar o verdadeiro, o real, o que transcende a matéria, o ponto que está em mutação. Em certa medida, a despeito de seu final com tom moralista, o autor dispara seus petardos cinematográficos ( a saber, câmera, edição e montagem) contra o que assume ser retrógado, conservador e obsoleto. De acordo com o olhar de Sean Penn, a imaginação, sim, tem chance de chegar ao poder e fazer muito melhor do que os neocons. E isso fica claro na cena em que, na delegacia, o jovem McCandless quase sorri do policial ao mesmo tempo em que somos apresentados à figura do então presidente Bush. Mera coincidência, dirão alguns; é a imaginação como farsa, eu acredito.

Farsa, porque não é certo que as escolhas feitas pelos jovens necessariamente são acertadas, apenas porque não reflete a mentalidade dos velhos e dos que estão no poder; farsa, porque essa geração, assim que comete seus erros de rota, não hesita em culpar seus predecessores, ao mesmo tempo em que, quando obtém êxito, costuma afirmar: "venci, a despeito deles, velhos conservadores, que só me atrapalharam". Entre o fato e a ficção, a mistificação segue envolvendo corações e mentes. McCandless, para muitos, encarna o ideal daquele que conseguiu se soltar das correntes, dos grilhões; numa visão bastante objetiva, no entanto, pode ser visto, apenas, como um perdedor. A farsa da imaginação.