sexta-feira, 25 de abril de 2008

Contra a Virada Cultural

Leio na mídia impressa desta semana sobre a Virada Cultural. Para quem ainda não sabe, trata-se de um evento que traz 24 horas de programação cultural dos mais diferentes estilos, sabores e gostos, com atrações internacionais e nacionais, que acontece já faz alguns anos em São Paulo. Inspirado em semelhantes europeus, o evento é promovido pela Prefeitura de São Paulo com o claro objetivo de tirar da cidade a pecha de capital dos negócios e fazer da metrópole um pólo da cultura, para além das grandes produções que já batem cartão por aqui. A despeito de tudo isso, o evento luta, nesta 4ª edição, contra a má-sorte. Explica-se: nas outras ocasiões, acontecimentos externos fizeram com que a Virada fosse notícia por vias tortas. Assim, se na primeira edição não houve divulgação à altura da importância do evento, nas outras duas vezes, o medo tomou a cidade de assalto, devido à sombra dos ataques do PCC em 2006 e o quebra-quebra provocado pela polêmica participação dos Racionais num show da Praça da Sé em 2007. Para 2008, a proposta é de um evento plural e sem brigas, consolidando, com isso, o sucesso, graças à adesão popular: estima-se a participação de mais de 3 milhões de pessoas, um número que contraria a visão dos mais céticos sobre a validade da virada. Independentemente disso, é possível contestar não só a virada cultural, mas também o alardeado sucesso – e, por conseguinte, a participação popular.

Eventos como esse tendem a ofuscar as características originais do lugar em que acontecem. No caso, São Paulo, cidade a que todos gostam de chamar de capital da gastronomia, quarta ou terceira maior cidade do planeta, entre outros exageros. O superlativo triunfalista desses termos, no entanto, nunca conseguiu afastar a característica de uma burguesia inculta e sem modos – basta uma olhada no trânsito da cidade. Mesmo falando inglês sem sotaque e com pelo menos cinco restaurantes japoneses por bairro nobre, o paulistano e sua cidade não convencem quando o assunto é cultura. Muito ao contrário. Fica devendo. Daí a necessidade de construir, à moda da casa, eventos que estabeleçam uma tradição cultural no sentido antropológico do termo. Artistas e atrações alternativos e do mainstream estabelecem convivência plural numa cidade desigual mesmo na sua demografia. Afinal, como é que faz para levar as pessoas ao centro? E as atrações para a periferia? Na tentativa do diálogo com as diferenças, sobra propaganda de inclusão, falta substância. Um dia. 24 horas. Nem mesmo Jack Bauer, o capitão Nascimento dos EUA, conseguiria viver com tanta informação. Ainda assim, o evento é saudado pela diversidade, pela quantidade. Ninguém questiona, no entanto, a qualidade da recepção – algo que também é fundamental.

Pois não há quem me convença de que o paulistano, esse ser pressionado pela pressa e pelo instantâneo, essa figura inventada pela mídia chique dos Jardins e de Higienópolis, não tem a menor capacidade de aproveitar 1/5 dessa programação. Os motivos são variados. Há, por exemplo, a falta de hábito em freqüentar os bens culturais, preferindo, sempre no tempo livre, o shopping ao espaço público, uma vez que o primeiro fornece uma falsa sensação de bem-estar e de segurança, enquanto o segundo carece de gente que não esteja ali para degradar, roubar e assassinar. Não se trata, é bom explicar, de uma condição de classe. Antes de uma leitura marxista, é, sim, uma leitura hobbesiana. Na cidade, o homem é o lobo do homem e nessas condições todos acabam agindo com o mesmo grau de barbaridade – usar os Racionais MCs como bode expiatório é uma tática das assessorias de imprensa e de seus respectivos spin doctors: "definam seu inimigo", ensinam eles. No caso, como na música do Cazuza, não convidaram os presentes da Praça da Sé para uma festa pobre. Deu no que deu.

Para além dessa constatação, há o inconveniente, porém necessário incentivo oficial. Em outras palavras, isso significa que este é mais um evento sustentado pelo governo municipal. É evidente que não se trata de nada original. Há quem diga, aliás, que a cultura no Brasil não aconteceria se não fosse o papai Estado – talvez por isso Collor seja tão odiado pelas elites bem-pensantes: ao quebrar com o modelo da Embrafilme, fez com que muita gente perdesse seu emprego, criando a figura do cineasta-publicitário, do cineasta-jornalista, do cineasta-formador de opinião. De volta à Virada, a constatação mais marcante é essa: sem o incentivo do governo, o evento não aconteceria. É claro que não, gritará alguém, alegando que o dinheiro da Secretaria da Cultura é crucial para a contratação de artistas, bem como para fazer com que a infra-estrutura exista. Mas não é apenas disso que se trata. Observa-se que a Virada não conta é com a adesão popular no sentido mais consciente do termo. Ou seja, o público até comparece, porém mais animado é com a natureza do acontecimento: 24 horas, uau, quanta cultura!, e tudo de graça. Eis um elemento bastante curioso: as pessoas passam a condicionar sua presença ali pela gratuidade. Exagero? Basta olhar a audiência do público no cinema no primeiro trimestre deste ano: abaixo do que foi no mesmo período no ano passado. Lembrando que Tropa de Elite é um fenômeno da pirataria, antes de tudo.

Por fim, cabe a pergunta: com a Virada Cultural a cidade fica mais civilizada, mais plural, mais acolhedora? A resposta, para todas as questões, é não, uma vez que a Virada é um evento criado depois que todo o folclore a respeito da cidade já estava sedimentado (ouse perguntar a um matuto do interior do Brasil sobre a cidade, e ele responderá que é "a capital da gastronomia" entre outras platitudes). Nesse sentido, a virada, com o azar do trocadilho, é nada mais que um virado à paulista.