sábado, 3 de maio de 2008

A vida é uma tragédia, ensina Woody Allen

O filme é O Sonho de Cassandra, dirigido, como se lê no título deste texto, por Woody Allen, o cineasta que mesmo quando faz um filme abaixo da média a gente - no caso, eu - cria uma estratégia diversionista para mudar o foco da discussão, tal como o técnico do Palmeiras faz quando seu time é goleado pelo campeão pernambucano. Spin. Uma dia você aprende, incrédulo leitor, e pára de acreditar em tudo que lê. Eu, de minha parte, divago; portanto, volto ao filme no próximo parágrafo.

Os cadernos culturais insistiram na informação mais objetiva, se assim se pode dizer: trata-se do terceiro filme de Woody Allen em Londres --- algo bastante significativo, escrevem, posto que o diretor a-do-ra-va filmar em Nova York. Mudou o cineasta ou os tempos mudaram? Enquanto os críticos e os jornalistas tergivesam sobre a resposta, Woody Allen segue realizando filmes mais competentes quando assume um tom mais grave, tal como já ocorreu em Crimes e Pecados - "o melhor dele", disse Daniel Piza - ou quando o diretor fez Hannah e Suas Irmãs, este premiado pelo Oscar, ou mais recentemente, no retumbante e fabuloso - à falta de adjetivos mais precisos - Match Point. A lista poderia continuar até mesmo porque, conforme repetem as publicações, Allen se mantém ativo realizando ao menos um filme por ano. De novo, esqueci de falar da obra. Tentarei no próximo parágrafo.

A história deste trata de dois irmãos, interpretados por Ewan McGregor e Colin Farell, que se metem em uma enrascada para escapar de suas enrascadas particulares. De um lado, um beberrão apostador que a todos deve dinheiro; de outro, um aspirante a alguma coisa importante na sociedade de consumo, no mercado de status. A Allen-girl, desta vez, é a bela Hayley Atwell, que consegue mover a cabeça de um dos personagens, mas, desta vez, o trágico está no sentimento de culpa que resta mesmo naqueles que aparentemente se esqueceram de suas consciências. Pois se é verdade que vivemos num mundo em que "Deus é um delírio" ou "Deus não é grande", conforme pregam respectivamente o biólogo Richard Dawkins e o jornalista Cristopher Hitchens, por que é que a culpa, ao final, sempre aparece? Uma pergunta que fica sem resposta, a despeito das muitas hipóteses existentes.

O fato, no entanto, é que o filme de Allen aposta nessa questão e nos dilemas morais: até onde é possível caminhar "without crossing the line"? Um dos personagens arrisca que só na hora é que se sabe. De todo modo, a covardia e a fraqueza podem não aparecer no momento-chave, mas muitas vezes dão as caras quando o estrago já foi feito. E aí, como diz um personagem, não há como voltar atrás. E agora que escrevo sobre o filme, uma outra obra me vem à cabeça: "Festim Diabólico", de Alfred Hitchcock, problematiza, como dizem os acadêmicos, situação semelhante, muito embora com uma sofisticação um tanto mais aguçada, além de a película de Hitchcock não ter necessariamente uma tensão insolúvel para desencadear a história.

Um outro elemento assaz delicado da trama de Woody Allen é a música que envolve o filme. Há alguns anos, a revista Veja, em um daqueles infográficos feitos para serem engraçadinhos, disse que um filme de Woody Allen é reconhecível de longe porque a música é um jazz tradicional. Tal condição pode ter sido verdade factual ao longo da década de 1990, quando o diretor abusou de Gershiwn, Duke Ellington, entre outras referências que lhe tocam a educação sentimental. Entretanto, como escreveu certa feita o economista John Maynard Keynes, os fatos mudam. Neste caso, a trilha vigorosa é assinada por Philip Glass, que, entre outras, é responsável pelas turbulentas sequências de As Horas, filme vencedor do Oscar em 2003. O resultado é acima da média, sobretudo porque as cenas centrais são marcadas pelo toque sensível, mas que não deixa de assinalar o trágico.

Evidentemente, este texto é de alguém que aprecia a obra de Woody Allen, alguém que considera o diretor um dos grandes do cinema que, ainda vivos, resistem em produzir cinema na era do BitTorrent - o que, diga-se, é um feito. A propósito, ainda hoje, antes de ver o filme, li uma nota no guia da Folha, dizendo que o filme, ruim, "seria cômico se não fosse trágico". A frase é uma boa gag, mas este Sonho de Cassandra vale muito mais que uma boa piada pronta.