segunda-feira, 14 de julho de 2008

O mundo (não) é chato!

O texto a seguir foi motivado depois de dias de audiência corrente de TV. Para dar nome aos bois, dos programas esportivos na TV. Tenho especial apreço por esse tipo de atração, já que, como brasileiro, não nego minha identidade cultural moldada à imagem e semelhança do que ocorre nos campos --- e dos comentários que tais acontecimentos geram. Daí que, de uns tempos para cá, torcer tornou-se tarefa das mais burocráticas. Alguém não pode mais tão somente torcer em paz, mas deve pedir, antes, pela paz e pedir desculpas pelo time de coração ou até mesmo para discutir sobre futebol. Tudo isso é proibido na libertinagem atual. Pede-se, antes de mais nada, que as desculpas sejam dadas caso o orgulho deste ou daquele esteja ferido. Uma bobagem sem tamanho.

Sabe-se lá como tudo isso tomou força. Tenho a impressão, no entanto, que isso começou lá atrás, quando alguns promotores decidiram por bem banir as torcidas organizadas - e uniformizadas - dos estádios de futebol na década de 1990. O motivo, para quem não se lembra, era a tenebrosa onda de violência nos estádios de futebol, que culminou com a morte de um torcedor na decisão de um torneio de juniores entre São Paulo e Palmeiras. De lá para cá, a violência diminuiu, mas, aqui e acolá, sobra pancadaria, e, como se sabe, onde há esse tipo de aglomeração, tais acontecimentos, se não são previsíveis, são esperados pelos sistemas de controle da sociedade. Dessa luta pela "Paz nos Estádios", houve também um levante do politicamente correto, movimento esse que atingiu desde o universo da política e dos costumes, como sabem os que leram o romance A Marca Humana, do escritor norte-americano Philip Roth, e alcançou até mesmo o universo da teledramaturgia, com os folhetins televisivos tratando, agora, das chamadas "questões sociais", sem mencionar outros níveis do patrulhamento, como é o caso da tentativa de inibir a campanha de alimentos com gordura por serem nocivas às crianças.

Por mais absurdo que pareça, o cenário do parágrafo anterior articula-se, objetiva e subjetivamente, dentro do poroso universo da linguagem. Ou seja, existe a evidente tentativa de fazer com que as pessoas adotem comportamentos, indumentárias, estilos de vida, hábitos de consumo e padrões de vida absolutamente vinculados a uma estrutura pautada pelos meios de comunicação de massa - e aqui não há qualquer teoria conspiratória contra a Rede Globo ou contra os Estados Unidos: trata-se, tão somente, de uma constatação do estado das coisas. Nesse sentido, observa-se que qualquer ação, ou reação, que tente fugir desse formato socialmente aceito pelos meios de comunicação como natural é fortemente rechaçado pelos formadores de opinião. Aqui, inclui-se, também, os meios considerados insurgentes, da famigerada cultura alternativa. Em um momento dominado pela cultura do status, o ser alternativo também foi absorvido pelo mercado, que, aqui e acolá, define o mundo de acordo com os rótulos existentes no supermercado de idéias. Também essas idéias estão pré-definidas, e é aqui que voltamos a falar de futebol.


É fato que, para constituir um padrão de audiência desejável aos níveis aceitos por uma determinada fatia do mercado consumidor, também os veículos esportivos tentam, de toda a maneira, não somente elitizar o futebol - haja vista o show de tecnologia das transmissões esportivas -, mas, principalmente, de higienizar o esporte que, até outro dia, era visto com desdém pela grã-fina com narinas de cadáver, personagem do genial Nelson Rodrigues. Agora, essa mesma grã-fina não só assiste ao "espetáculo", como também quer comentar o que achou da escalação do Carlos Alberto Simon para apitar o jogo. Para que essa, digamos, renovação do público possa acontecer com mais frequência, é necessário, mais do que sempre, ressaltar que o esporte é saúde, que a violência nos estádios não está com nada e, agora, mostrar como se deve efetivamente torcer: em linhas gerais, é feio secar o time alheio; bonito, mesmo, é fazer festa para a sua equipe, ainda que os jogadores, os "artistas da bola", não consigam vencer o jogo --- nada de dizer que foi batalha ou que o atacante é artilheiro. Isso tudo remete à cultura da violência que a linguagem - salve, Wittgenstein - quer esconder.

Enquanto a novilingua de Orwell chega às mesas redondas, lá e cá, alguns já têm alertado para esse processo de aparelhamento do politicamente correto no futebol. No ano passado, o jornalista Xico Sá alertou em sua coluna na Folha de S.Paulo para o fato de que, num jogo entre Brasil e Uruguai, não havia pobres ou desdetados no Morumbi: apenas VIPs. Mais recentemente, na final entre Fluminense x LDU, Juca Kfouri, após ressaltar a "festa da torcida", acusou o óbvio ululante: não havia negros no Maracanã. Por outro lado, começam a pipocar, aqui e acolá, o número de teses da academia sobre o futebol. De uma hora para a outra, a academia descobriu os estádios. Então, Hilário Franco Junior, professor medievalista da USP, gastou sua pena na Dança dos Deuses, longo ensaio sobre a relação entre a cultura nacional, a sociedade e o futebol. E neste ano foi a vez de José Miguel Wisnik, também pela Cia das Letras, publicar Veneno Remédio, obra com tom mais memorial, mas de pegada não menos intelectual, sobre o futebol. Para se ter uma idéia da dimensão da abordagem, Winik chegou a comparar os gols de Ronaldinho Gaúcho a uma visão de mundo pós-moderna. Sim, a grã-fina com narinas de cadáver também estava na Festa Literária de Paraty e aplaudiu as palavras do douto professor.

Para o andar de baixo, o futebol segue como o prazer em que o homem simples se refestela: xinga o adversário, briga com o colega, aproveita para comentar sobre a rodada nas segundas e quintas e não dá a mínima para essa tentativa de cerceamento do seu ir e vir. Do contrário, o mundo seria muito mais chato.